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As histórias de quem vive sem saber ler e escrever, sem conhecer a identidade verdadeira e sem sinal de telefone


Fonte: Jornal Arauto
Publicado 18/10/2020 10:00
Atualizado 19/10/2020 09:16

Geral   SUPERANDO DIFICULDADES

Você, leitor, já se imaginou vivendo sem água encanada em casa, sem energia elétrica, sinal de telefonia ou até mesmo sem um banheiro equipado com vaso sanitário ou chuveiro elétrico? Ou, ainda, sem possuir documentos que o identifique como cidadão ou sem saber ler e escrever, nem mesmo seu nome? Se para muitos nem passa pela cabeça viver nestas condições, para outros, essa é a realidade diária.  

Os personagens desta reportagem mostram que apesar das dificuldades que enfrentam, não lhes falta esperança em dias melhores. Entre eles, Eva Kuhn, que não sabe ler nem escrever, se alegra em ver a filha Alice, de nove anos, na escola. Já Lurdes Schwantz, que teve dificuldade em pedir socorro quando o marido teve um derrame, pois o sinal telefônico não funcionava, encontrou na tecnologia a solução para o problema. Além delas, Maria de Lurdes Machado viveu mais de 30 anos acreditando ter um nome que na verdade nunca a pertenceu e, hoje, quer ser reconhecida pela verdadeira identidade.

Eva não sabe ler e escrever

Quando Eva Kuhn e Osmar Terres, ambos de 39 anos, precisam ler uma nota de produtor de tabaco, fazer um cálculo ou verificar a bula de um medicamento, alguém conhecido precisa auxiliar. Quando um bilhete da EMEF Intendente José W. Koelzer - onde a filha Alice estuda – chega, é aos vizinhos em Alto Ferraz, interior de Vera Cruz, que a família recorre para entender o recado. Aliás, é a menina de nove anos quem muitas vezes lê o rótulo da caixa de um remédio - para identificar o nome - ou um bilhete de agendamento de exame do posto de saúde, ajudando os pais, que têm dificuldade na leitura, em situações diárias.  

Eva conta que na infância não teve oportunidade de frequentar a escola e, por isso, não sabe ler nem escrever. Sempre que um documento precisa ser assinado recorre à digital. “Não tenho vergonha de não saber assinar meu nome. Sei que foi difícil pra mãe criar eu e meus irmãos sozinha. Pra ir à escola tinha que atravessar um rio, porque a gente morava ilhado. Era perigoso e a mãe não podia fazer esse caminho com a gente todo dia”, relembra. Já Osmar frequentou a escola até o 2º ano do Ensino Médio, mas pouco se recorda do aprendizado. “Tenho a ideia fraca. Sei escrever algumas coisas, entre elas meu nome completo, mas não entendo muita coisa”, justifica. O produtor de tabaco revela que nem sempre conseguia ir às aulas, pois morava muito longe de um educandário, além de não se dedicar aos estudos e trabalhar desde novo auxiliando os pais no cultivo na lavoura.  

Hoje, Eva e Osmar se orgulham ao ver Alice aproveitar as oportunidades que não tiveram. Prontamente Alice completou idade de frequentar a pré-escola, se mudaram de Linha São João, em Sinimbu, para mais perto de uma escola. Hoje, ela frequenta o 3º ano do Ensino Fundamental. “Conforme ela vai aprendendo consegue nos ajudar mais em casa”, frisa a mãe, que conta, ainda, que nesse período de estudos em casa, a menina se esforça, mas não pode contar com a ajuda dos pais nas tarefas. “Mas a gente não desiste. Corre lá na Márcia [Wendland – diretora da escola] e ela ajuda”, complementa. Talvez pelas dificuldades que os pais enfrentam com a escrita e a leitura, Alice tem como matérias preferidas a produção de texto e o português. “Gosto de poder ajudar eles”, fala a pequena. “É um orgulho muito grande pra gente ver que ela tá na escola, se dedicando como a gente não pôde. É muita alegria”, completa Eva.

Maria viveu mais de 30 anos sem saber a verdadeira identidade

Por mais de 30 anos, Maria de Lurdes Machado viveu acreditando ter um nome que na verdade nunca a pertenceu. Ela e as irmãs, Otília e Jurema, foram criadas por famílias adotivas, em cidades diferentes. Foi somente aos 30 anos que Maria recebeu o primeiro documento de identificação, uma certidão de nascimento entregue pela irmã adotiva. Na época, morava em Soledade e não teve a quem questionar sobre a veracidade do documento, já que os pais de criação faleceram, além de que sempre foi chamada de Maria – nome que constava no registro de nascimento. 

Com a certidão, Maria - que acabou adotando o nome que sempre fora chamada - encaminhou documentos como identidade e CPF. “Sempre achei que esse fosse meu nome verdadeiro, pois nunca alguém me questionou nada”, revela. Com o passar dos anos, ela inclusive conseguiu ter acesso ao Bolsa Família, sem problema para comprovar sua identidade. Somente anos mais tarde, já com mais de 60 anos, ela descobriria que aquele nome nunca a pertencera. 

REENCONTRO

Depois de viver em Soledade com a família adotiva, Maria mudou-se para Nova Santa Rita, mas nunca deixou de procurar as irmãs. Conseguiu reencontrar Otília, que mora em Alto Dona Josefa, interior de Vera Cruz, no ano passado, mas elas nunca tiveram notícias de Jurema. A filha de Otília, Silda, conta que seu pai teve uma filha fora do casamento, chamada Sueli, e que a mãe foi quem a criou. Anos depois, quando Sueli tornou-se adulta, foi morar em Santa Rita e, lá, conheceu Maria e lhe contou sua história. O reencontro entre as irmãs ocorreu no ano passado e, desde então, Maria mora com Otília em Vera Cruz.

Maria passou a desconfiar que algo estava errado quando perdeu o Bolsa Família, sem saber o motivo. Então, quando chegou a Vera Cruz, procurou a Secretaria de Desenvolvimento Social do município para tentar novamente o cadastro, mas como já tinha idade para se aposentar, sugeriram que o fizesse. Porém, ao buscar atendimento junto à Previdência Social descobriu que a aposentadoria de Maria de Lurdes Machado já estava encaminhada, já que essa identidade pertencia a outra pessoa. 

Hoje, o objetivo de Maria é conseguir o registro tardio de nascimento e encaminhar sua aposentadoria. Para isso, a família está recebendo instruções da Assistência Social. “Meu sonho é conseguir a aposentadoria, ganhar meu dinheirinho e construir um cantinho pra morar. Hoje já sou feliz em ter reencontrado parte da minha família, mas para completar essa felicidade quero ter meus próprios documentos”, afirma. 

Lurdes e Guildor vivem sem sinal de telefone

No dia 9 de julho, Lurdes Schwantz, moradora da localidade de Dona Josefa, em Vera Cruz, passou por um susto que jamais vai esquecer. Quando o marido, Guildor Schwantz, saía do banho alertou que não estava bem. Bastaram segundos para que fosse ao chão, teve um derrame. A primeira reação da esposa, após acudi-lo, foi correr para o telefone fixo e chamar por socorro. No entanto, não pôde completar a chamada já que não havia sinal telefônico naquele dia. Para socorrer o marido foi preciso correr até a casa da irmã, que mora na mesma localidade. Através do WhastApp conseguiram contato com o filho do casal, Diego, e Guildor foi encaminhado ao hospital. “Naquele momento o tempo fez muita diferença, pois ele poderia não ter se salvado se não o tivéssemos socorrido logo”, lembra Lurdes.

Assim como no dia em que passaram por tremendo susto, o sinal de telefone raramente funciona na propriedade do casal, impossibilitando-os de utilizar o aparelho fixo que a família mantém na sala de casa. “Nem ligação com o celular dá pra fazer”, salienta a moradora da localidade. “É bem complicado, pois atrapalha em diversas situações. Esses dias estávamos esperando uma ligação da Saúde relacionada a meu marido e ficamos apreensivos, pois o telefone poderia não funcionar. Muitas vezes também preciso encomendar ração para os animais ou adubo na agropecuária, para ter a quantidade necessária quando for buscar, e não consigo. Ou, ainda, quando quero avisar alguém que vou fazer uma visita. Sempre temos que chegar de surpresa”, acrescenta.

ENCONTRANDO UMA SOLUÇÃO

Com as limitações pela falta de sinal telefônico no local onde vivem, o casal resolveu apostar na tecnologia. Comprou um celular e instalou internet em casa no mês passado - e o sinal é bom, conforme eles. A solução foi a mesma encontrada por muitos moradores da localidade que optaram pela internet ao invés de contar com a sorte para completar as chamadas por telefone fixo ou celular.    

De acordo com Guildor e Lurdes, tem sido muito mais fácil se comunicar desde então, seja com o filho ou com os demais parentes. Até mesmo com a tia de Lurdes, que mora no Paraná, a comunicação foi facilitada. “Hoje conseguimos conversar bem mais seguido, se eu fosse fazer uma ligação pelo telefone com ela, o custo seria muito maior, assim só pagamos a internet e posso falar com ela, ou com meu filho, quando quiser”, se alegra. 


Foto: Jornal Arauto / Taliana Hickmann
Sem sinal de telefone, Lurdes optou pela internet
Sem sinal de telefone, Lurdes optou pela internet

Foto: Jornal Arauto / Taliana Hickmann
Maria (de casaco preto) reencontrou a irmã e a sobrinha
Maria (de casaco preto) reencontrou a irmã e a sobrinha

Foto: Jornal Arauto / Taliana Hickmann
Alice, de nove anos, é quem auxilia os pais lendo bilhetes e documentos
Alice, de nove anos, é quem auxilia os pais lendo bilhetes e documentos