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Diferente de mim


Publicado 13/05/2022 09:14

Mensagem do Dia

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Já temos robozinhos dando rolê em Marte, mas ainda não entendemos exatamente o que faz com que dois estranhos se apaixonem e continuem juntos.

Outro dia mesmo estava lendo sobre isso. Como a ciência é incapaz de prever com clareza se duas pessoas irão, digamos assim, “se gostar” e que, a partir daí, darão certo. 
Pesquisadores já tentaram de tudo: um match de preferências, objetivos, interesses em comum, valores. Nada funciona com precisão.
Nem mesmo quando nos perguntam: “descreva o seu amor ideal.” Nem assim dá certo. 
O que é bastante claro, porém, é que não buscamos um clone, uma versão nossa em outro corpo. 
John Gottman, bambambã da área, diz que similaridade não é a base de uma paixão ou de um amor duradouro. 
Bom, só que daí a gente casa.
Mora junto, junta as escovas de dente e briga porque um não coloca a tampinha de volta na pasta. E queremos que esse um trate de aprender a fazer as coisas do jeito certo: o nosso.
E começam as discussões porque a louça não é lavada exatamente da maneira que lavamos, e as almofadas não são posicionadas como deveriam ser, e o carro não permanece limpo como desejado.
E queremos transformar o outro em uma versão familiar. Bem familiar.
Queremos que sinta como sentimos, que pense como pensamos, que fale como falamos. E, se possível, que trate de se comportar como… advinha? 
E isso é o que a gente enxerga. Ainda tem uma porção de questões não óbvias. 
Eu me peguei pensando nas vezes em que quis mudar nele aquilo que no fundo gostaria de mudar em mim, mas que por diversas razões não dei conta.
Das coisas simples como os muitos comentários bestas que dei em relação a horta, quando no íntimo eu é que adoraria ter esse prazer em mexer na terra, sei lá, acho legal, acho bonito. Mas na real não tenho a menor paciência e morro de agonia nas mãos.
Até coisas mais complexas e que passam ainda mais despercebidas. Comportamentos e atividades com as crianças, situações e coisas que eu não conseguia fazer ou não tinha saco, mas queria que ele tivesse. E que quisesse. 
Mais cômodo mudar o outro: ele que encontre a força e o caminho que eu não achei.
É claro que o casal que se conheceu há décadas, em uma era onde o maior dilema era escolher o programa de sexta à noite, não é mais o mesmo. A vida exige isso da gente. 
As demandas mudam, as responsabilidades triplicam entre um boleto vencendo, o pensamento no frango que precisa descongelar para o almoço de amanhã e o xixi que quase escapa porque tem um filho fazendo cocô em câmera lenta enquanto você está se mijando.
Amadurecemos, aprendemos e crescemos.
Por isso não pense que vim aqui apontar o dedo para o relacionamento alheio. Vim falar de mim e das coisas que há anos venho descobrindo.
Nessa empreitada sinistra e bonita que é continuar junto. Querer continuar junto. Ajustar para continuar junto. Relevar para continuar junto. E torcer para que ele também siga relevando e ajustando para que continuemos juntos.
Tenho refletido sobre essa escolha que é, dia após dia, amar. 
Amar a pessoa que conheci e a que está se tornando. Amar quando o “vá catar coquinho” chega a coçar na ponta da língua”. Amar e traçar a linha entre o incentivar a evoluir e o permitir que continue o mesmo. 
E por fim, amar como era no começo: diferente de mim.

Rafaela Carvalho


Diferente de mim