Desde o nascimento, somos reconhecidos por um nome, que nos representa em sociedade e nos difere dos demais. Está em nossos documentos e é através dele que exercemos a cidadania. Porém, em muitos casos, esse nome civil não condiz com o gênero pelo qual o indivíduo se reconhece. É um fardo, pois representa alguém que ela ou ele não são mais. Além disso, é um dos principais impeditivos para que pessoas transgênero acessem serviços públicos sem constrangimento e violação de direitos – fator que vem sendo reconhecido em iniciativas recentes, como a do Hospital Santa Cruz, que desde março deste ano aplica decreto que permite ao paciente usar nome social em seu cadastro para atendimento.
Em meio à busca por alterar no registro civil o nome e o gênero pelo qual se reconhece, a funcionária do Cadastro Único (CadÚnico) de Santa Cruz do Sul, estudante de Serviço Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) - onde é presidente do DCE -, Suelen Moraes, de 26 anos, já passou por diversas situações que deseja esquecer. “Em 2016, iria a Brasília para a Conferência LGBT e contraí H1N1 em Porto Alegre. Ao procurar o posto de saúde não tive o direito ao nome social respeitado. Estava doente e ainda fui constrangida pelos profissionais do posto de saúde. Por óbvio, ao me recuperar denunciei para a ouvidoria do SUS, tendo em vista que desde 2009 existe uma portaria que garante o direito ao nome social”, relata a jovem transexual.
Na época, quando Suelen ratificou seu nome e sexo no registro civil foi preciso entrar com uma ação judicial - processo cansativo, que para algumas pessoas transgênero gerava frustração, já que nem sempre conseguiam alterar o gênero nos documentos. “Significou pra mim ter dignidade e não passar por constrangimentos. Sou reconhecida enquanto mulher pelo Estado e isso me alegra muito”, frisa, ao citar que o processo foi complicado devido ao volume de documentos solicitados. “Tive que provar na Justiça que eu sou eu, só assim foi deferido o meu pedido de retificação de nome e gênero”, complementa.
Contudo, há três anos, esse processo vem sendo mais facilitado do que foi para Suelen. Isso porque em março de 2018 o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a importância de retirar a obrigatoriedade da cirurgia de mudança de sexo e a solicitação judicial para a retificação do nome. Ainda em junho daquele ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento nº 73/201814, obrigando todos os Cartórios de Registro de Pessoas do Brasil a atenderem a mudança.
Desde então, toda pessoa maior de 18 anos completos pode se dirigir até o cartório, se autoidentificar trans e alterar o nome e o gênero. Em Vera Cruz, por exemplo, conforme o Cartório de Registros Públicos, até o momento dois pedidos foram feitos - sendo um recepcionado e encaminhado a outro cartório, e outro processado inteiramente no local. Já em Santa Cruz do Sul, são nove alterações realizadas e duas encaminhadas para outras serventias, de acordo com o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do município. Contatado pela reportagem, o Cartório localizado em Monte Alverne, na terra da Oktoberfest, disse ainda não ter registrado tais solicitações.
Conforme Suelen, a importância do reconhecimento é de garantia ao direito à identidade e à dignidade humana. “O desrespeito ao nome social é um dos principais empecilhos para que pessoas trans acessem serviços. Respeitar o nome social e facilitar a retificação é de extrema importância para que a pessoa trans não seja constrangida ao buscar serviços públicos”, frisa a jovem, ao reforçar que vê com bons olhos esses avanços, porém, acredita que ainda há muita burocracia envolvida.
O primeiro passo, ao requerer a alteração e a averbação do nome e do gênero no registro de nascimento ou de casamento, é reunir todos os documentos exigidos (veja mais abaixo). Estando a documentação correta, o prazo para conclusão pode variar de dois a cinco dias, conforme os cartórios de Vera Cruz e Santa Cruz do Sul.
Para atualizar demais documentos, como por exemplo a identidade, a registradora substituta do cartório da Capital das Gincanas, Jeane Ines Weschenfelder, explica que, finalizado o procedimento de alteração, o Registro Civil das Pessoas Naturais comunica o ato oficialmente aos órgãos expedidores do RG, CPF, passaporte, Identificação Civil Nacional (ICN), bem como ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE). “No entanto, a pessoa requerente deverá providenciar a alteração nos demais registros que digam respeito, direta ou indiretamente, à sua identificação nos documentos pessoais”, alerta.
Jeane aponta que o custo aproximado para a alteração é de R$ 250. Contudo, esclarece a 2ª registradora substituta do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Santa Cruz do Sul, Paula Tatiana Burtzlaff, cada caso é verificado separadamente. Segundo ela, o valor varia dependendo do estado civil da pessoa, onde foi registrada/casada e dos documentos que possui. “Tendo o ofício que comunicar, ao custo da pessoa requerente, a alteração aos órgãos expedidores e ao TRE, pedimos para a pessoa vir pessoalmente coletar as informações. Assim, verificamos seu estado civil e os demais documentos, podendo então repassar um valor preciso”, orienta.
Mesmo para os transgêneros que não têm como arcar com os custos do processo, o sonho de ter o nome e o gênero reconhecidos no registro civil ainda é possível. De acordo com Jeane, aos reconhecidamente pobres, que assim se declararem, o processo é gratuito. Para isso, devem apresentar declaração de hipossuficiência (pobreza), disponibilizada no cartório para ser preenchida e assinada – alegando, portanto, estar sujeito à responsabilização civil e penal, na forma da legislação pertinente.
São exigidas as certidões de nascimento e casamento, se for o caso, atualizadas, além da cópia dos seguintes documentos: RG; Identificação Civil Nacional (ICN), se for o caso; passaporte brasileiro, se for o caso; CPF no Ministério da Fazenda; título de eleitor; carteira de identidade social, se for o caso; comprovante de endereço; certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; certidão da Justiça Militar, se for o caso.