Mesmo com a alta hospitalar no dia 17 de março deste ano, após nove dias internado para o tratamento da Covid-19, o morador de Vera Cruz Milton Afonso Kroetz, de 56 anos, segue travando uma batalha contra as sequelas da doença – em sua maioria, respiratórias. O cabeleireiro e músico profissional voltou para casa com o pulmão comprometido em quase 50% e com dificuldade de fazer atividades simples do dia a dia sem chegar à exaustão. Também ficou mais fraco, já que emagreceu nove quilos, e passou a ter lapsos de memória.
O vera-cruzense não é o único a conviver com o quadro. Parcela expressiva de pacientes têm apresentado sintomas que perduram por 60 a 90 dias após ter o vírus ativo, conforme o médico pneumologista Carlos Eurico Pereira. “A causa dos sintomas persistentes tem a ver com o processo inflamatório intenso que é gerado pela guerra travada entre o sistema imunológico da pessoa infectada e o vírus. Ao se defender o organismo libera uma série de substâncias, as chamadas citocinas, que atacam as células infectadas e os vírus, mas acabam atacando também células sadias do organismo”, esclarece.
Nesse processo, tanto de recuperação da parte respiratória como da muscular, a fisioterapia tem papel central, conforme o profissional da área Daniel Sehnem, já que além da doença atingir a função pulmonar, o paciente fica inativo por longos períodos, como no isolamento e/ou hospitalização. “Ele fica muito debilitado e perde qualidades físicas importantes no processo respiratório e na parte motora. Dessa forma, a reabilitação visa restabelecer a função pulmonar, através de exercícios de reexpansão, e recrutar estruturas pulmonares a fim de que as trocas gasosas voltem a acontecer progressivamente. Também ocorre com exercícios musculares, tanto dos músculos que auxiliam no processo de respiração, como da musculatura em geral, devolvendo a potência, resistência e flexibilidade, características necessárias para atividades básicas”, frisa.
No caso de Milton, a fisioterapia foi iniciada já na internação no Hospital Vera Cruz. “Fui colocado no oxigênio, aquele pela sonda nasal, tomava injeções de anticoagulantes e fazia fisioterapia respiratória, que me ajudou muito, pois tive que reaprender a respirar”, revela. Os exercícios eram realizados duas vezes por dia, de manhã e à tarde. “Sempre passando pelo processo de inspirar pelo nariz e expirar pela boca, fazendo três sequências de 10 ou 15 repetições. Em um dos exercícios, quando eu inspirava a fisioterapeuta pressionava o abdômen, para ajudar a expelir todo o gás, e quando eu expirava ela soltava. Tinha outro que quando eu inspirava e enchia o pulmão de ar, ia levantando lentamente os braços e aí soltava todo o ar dos pulmões”, cita.
Com a fisioterapia, revela Daniel, cada paciente responde de forma individualizada, já que alguns fatores associados contribuem ou dificultam sua evolução: “desde o nível de comprometimento pulmonar até obesidade, sedentarismo, problemas circulatórios preexistentes, metabólicos e de função de órgãos”. O fisioterapeuta assinala, ainda, que a recuperação respeita a evolução da capacidade pulmonar e cardiorrespiratória de cada paciente. “Às vezes a evolução inicia muito discreta, mas importante que isso não frustre o paciente, pois cada progresso é importantíssimo”, cita Daniel. Para Milton, essas pequenas vitórias vêm ocorrendo desde a internação. Ele conta que na chegada ao hospital, respirar era um ato torturante - tal como se dar poucos passos equivalesse a correr 10 quilômetros - mas que com o passar dos dias vem sentindo cada vez menos desconforto.
Na alta hospitalar, Milton recebeu orientações de procurar atendimento e continuar o tratamento das sequelas da Covid-19 em casa – e dessa forma fez. Passou a usar bombinha de asma a cada seis horas e a tomar um anti-inflamatório, bem como seguiu com os exercícios respiratórios. Além disso, toma medicamento anticoagulante e um complexo vitamínico. “Os exercícios se tornaram parte da rotina, tanto que às vezes estou sentado e começo a fazer de forma inconsciente. Segui com eles por umas quatro semanas depois de sair do hospital e não tenho mais aquele cansaço horrível”, afirma, ao expressar a alegria pelo avanço na recuperação. “As pessoas saem dos hospitais e pensam que estão bem, mas muitas vezes a luta continua em casa. Tem que continuar fazendo os exercícios respiratórios, começar aos pouquinhos a fazer alguma atividade, como secar a louça, essas coisas simples. E foram essas atividades, as mais simples, que foram grandiosas pra mim”, frisa.
O médico pneumologista Carlos Eurico Pereira explica que o risco de persistência de sintomas da Covid-19 depende da gravidade da doença. “Em torno de 10% das pessoas que tiveram sintomas leves persistem com eles, sendo que esses apresentam sequelas em percentual oito vezes menor se comparado aos que tiveram quadros graves da doença, como aqueles que passaram por internação em CTI por exemplo. Dessa forma, cerca de 80 a 90% das pessoas com quadros graves apresentam sintomas após os 14 dias da doença”, esclarece, ao acrescentar que em torno de 17% das pessoas passam por internação hospitalar provocada pela chamada síndrome pós-Covid.
O fisioterapeuta Daniel Sehnem acrescenta que é necessária avaliação criteriosa de todos os pacientes, mesmo os que tiveram quadros leves da Covid-19, bem como os jovens. “No início acreditava-se que pacientes idosos seriam mais suscetíveis às sequelas da doença mas, na prática, as idades são bem variadas e hoje muitos casos de pessoas com 40 a 70 anos são frequentes na clínica e no atendimento domiciliar”, diz.
Segundo Carlos Eurico, no consultório as principais queixas pós-Covid são cansaço, fadiga, dores musculares, tosse seca, dor no peito e falta de ar, mas os pacientes também apresentam tontura, palpitações, dores de cabeça, alterações de memória, dificuldade de concentração, queda de cabelo e perda de olfato e paladar persistentes. Quando identificados os sintomas e esses tiverem impacto na qualidade de vida, a orientação do médico é procurar atendimento. “Os profissionais são os mais variáveis, dependendo das queixas, mas clínicos gerais, pneumologistas e infectologistas estão entre os mais procurados nesta fase, além de neurologistas, dermatologistas e fisioterapeutas”, indica, ao citar que no caso de tosse e falta de ar persistentes é sempre indicado procurar atendimento médico, por se tratarem de sintomas tratáveis, que melhoram muito com indicação adequada de medicamentos inalatórios.
Além dessas dicas, Carlos Eurico e Daniel avaliam que, pelos sintomas da Covid-19 persistirem por 60 a 90 dias em alguns casos, os quadros de ansiedade e depressão em pacientes têm sido muito frequentes. Dessa forma, fazendo-se necessário o uso de medicamentos ansiolíticos e antidepressivos, além do atendimento com psicoterapeuta. “A Covid remete a situações extremamente limitantes e frustrantes. Ouvimos diversos relatos que dão conta que no diagnóstico positivo e processo de isolamento, as pessoas se sentem vistas como ameaça, levando à vulnerabilidade. Sem contar o sofrimento e as incertezas na hospitalização por estar longe da família, sem a certeza de reencontro e de vencer a batalha. É um processo muito complicado”, arremata o fisioterapeuta.
“Poder retornar, mesmo que aos poucos, com as coisas que fazia antes da Covid-19 é gratificante”, pontua Milton. Segundo o cabeleireiro – que exerce a profissão em casa – esta é a terceira semana que voltou a trabalhar, além de realizar outras atividades rotineiras, como cortar a grama.
Também, desde a alta hospitalar, o vera-cruzense já recuperou quatro dos nove quilos que perdeu desde o diagnóstico e sabe que grande parte da recuperação é resultado de sua persistência em manter o tratamento. “É um processo lento, soube disso desde o início. O médico disse que a recuperação depende de cada organismo, mas também do esforço, por isso mantive os exercícios respiratórios em casa para voltar a fazer o que amo, que é cortar cabelo, mas também tocar meu saxofone”, revela o músico da Santa Brass Band e da Banda Municipal de Vera Cruz.
Por enquanto, o sax permanece guardado, mas Milton acredita que em breve poderá tocá-lo. “Um dos exercícios que tenho feito é inspirar pelo nariz e expirar num canudinho que fica dentro de um copo com água. Esse movimento faz com que o líquido borbulhe. Logo no início eu sentia muito desconforto em fazer esse simples movimento, mas agora ficou bem mais fácil. Conforme fui avançando, percebi que pra tudo a gente precisa de prática e assim sei que vai ser com a música”, assinala, ao frisar a saudade que sente de tocar.
Há alguns dias Milton tem experimentado tocar a flauta doce, como se num processo de preparação para em breve tirar o saxofone da caixa e voltar a encantar com o instrumento como fazia antes.
A vera-cruzense Thais D’Avila Santos, de 29 anos, também segue a luta contra a Covid-19 mesmo após a alta hospitalar. Como consequências da doença sente cansaço e falta de ar para fazer atividades simples, não sente cheiro e sabor de muitos alimentos, além de ter sequelas psicológicas, queda de cabelo e insônia. Após tomar corticoides, o tratamento em casa segue com exercícios respiratórios iniciados no Hospital Ana Nery (HAN) – onde também passou por um novo tipo de terapia para o tratamento de pacientes Covid, a de alto fluxo.
Essa terapia surgiu na Europa em 2014 e, embora também esteja inclusa no processo para casos graves da doença em algumas casas de saúde da região, o HAN foi o primeiro a utilizá-la em pacientes logo no início da dificuldade respiratória. O objetivo é evitar que eles piorem a ponto de necessitar de leito de UTI. Dessa forma ocorreu com Thais. Ela conta que ao procurar a emergência do Hospital Vera Cruz no dia 7 de abril, estava com falta de ar e saturação em 84%. Após ser examinada, a médica Michelle Virgínia Eidt explicou aos seus familiares que o quadro poderia evoluir, podendo precisar de UTI. “Foi aí que ela falou sobre o tratamento com respirador de alto fluxo, que podia ser feito no Hospital Ana Nery”, conta a jovem.
A especialista em clínica médica e em terapia intensiva adulto do HAN revela que a Unimed aceitou o projeto piloto e fez a compra dos aparelhos, doando-os ao hospital. Segundo Michelle, no uso da terapia são estabelecidos critérios de início da dificuldade respiratória, a partir dos quais se prevê que o paciente vai piorar. Nesse momento, o equipamento de alto fluxo é colocado só no nariz, sendo que o paciente pode falar, comer, mas devendo ficar em repouso.
Para Thais, que chegou ao Ana Nery com 50% dos pulmões comprometidos e com sinais de pneumonia, o tratamento foi fundamental. “Fiquei quatro dias em repouso absoluto, sem sair da cama, para que meus pulmões começassem a abrir. Dormir, comer, beber água, tudo era difícil. O respirador que usei dificultava muito, pois era uma pressão forte de oxigênio para os pulmões”, revela. Segundo a paciente, depois do quinto dia de internação, iniciou a fisioterapia com uma máscara de oxigênio duas vezes por dia, exigindo que se esforçasse a respirar sozinha, sem a pressão do alto fluxo. “Assim foram diminuindo aos poucos os parâmetros do alto fluxo para o mínimo de oxigênio. Também fazia exercícios respiratórios sempre monitorando a saturação, pois quando eu fazia algum esforço ela caia”, recorda Thais.
A melhora no quadro e na saturação seguiu no sexto dia de internação, o que permitiu a retirada do alto fluxo e a troca fisioterapeuta para um óculos nasal com oxigênio. Horas depois, Thais teve o oxigênio retirado e, para sua alegria e da família, a saturação ficou estável. Após conseguir respirar 24 horas sem o auxílio de oxigênio, a jovem teve alta no dia 13 de abril – podendo continuar o tratamento em casa.
Entenda mais sobre a terapia de alto fluxo: Médica adota terapia para auxiliar no tratamento da covid-19 no Hospital Ana Nery.