O caso de Mariana Ferrer – que repercutiu nacionalmente após a matéria da The Intercept Brasil trazer a expressão “estupro culposo” – preocupa especialistas em Santa Cruz do Sul. O motivo, diferente da onda de publicações sobre o tipo penal inexistente, é a atitude do advogado de defesa do acusado, que excedeu os limites e acabou por torturar psicologicamente a vítima. A reportagem do Portal Arauto conversou com três advogados do município, que lamentaram o andamento da audiência.
A postura dos envolvidos desagradou autoridades e a comunidade em geral. O Conselho Nacional de Justiça instaurou expediente para analisar a conduta e a flagrante omissão do Magistrado durante a audiência. A Ordem dos Advogados (OAB) de Santa Catarina também instaurou procedimento para analisar a conduta do advogado de defesa.
Segundo a presidente do Comissão de Mulher Advogada de Santa Cruz do Sul, Manuela Braga, o juiz falhou na condução do ato. “O que vimos ali foi triste, degradante e um grande retrocesso para a busca da igualdade dos direitos das mulheres. O que aconteceu na audiência com a vítima Mariana foi inadmissível. Foi um verdadeiro julgamento da vítima por suas condutas fora dos autos, julgamento pelas suas postagens, e o pior, pasmem, em pleno ano 2020 pelas roupas que usa. A cultura machista que, infelizmente, ainda vivemos penaliza e culpa a vítima pelas ações de seus agressores”, destaca.
Gestos que, segundo o advogado especialista em Ciências Penais e Psicologia Forense Ezequiel Vetoretti, mostra o ultrapassado e nojento pensamento machista de imputar culpa à vítima em razão das roupas que usa, dos lugares que frequenta, das pessoas com quem anda ou das postagens que faz. “Pelo menos no trecho do vídeo que foi exibido, foi uma verdadeira humilhação da vítima, seja na forma comissiva, por parte do advogado, seja na forma omissiva, por parte do Juiz e do Promotor. O Estatuto da Advocacia impõe ao advogado que atue de forma a merecer respeito, contribuindo para o prestígio, nobreza e dignidade da profissão. Portanto, lamento muito a forma como a vítima foi inquirida e como a audiência foi conduzida”, analisa Vetoretti, que é membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).
Conforme explica a professora de Direito Penal da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) Caroline Fockink Ritt, se ficarem provados que aconteceram excessos, os órgãos corregedores deverão agir. Da mesma forma, o Conselho de ética da OAB. “Talvez o advogado devesse se ater aos fatos probatórios e não nas questões de caráter pessoal da vítima, o que pareceu que ocorreu nas imagens. Lamentável a situação de revitimização, humilhação e constrangimento... o que traz uma consequência muito negativa, pois são inúmeras as mulheres vítimas de estupro, (da violência em si, tanto doméstica quanto sexual) que não procuram as autoridades para denunciar, se constrangem, para não se expor e passar por situações de humilhação”, relata.
Segundo o Ministério Público de Santa Catarina, o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo. “O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes”, diz a nota.
Além da postura dos envolvidos na audiência, os especialistas também criticaram o uso da expressão “estupro culposo” pelo meio de comunicação, que acabou por confundir a população brasileira. Conforme a professora doutora e pós-doutora em Direito, Caroline Fockink Ritt, é preciso estar atento às notícias, principalmente nesta época de fake news. “Li a sentença e o fundamento da absolvição foi a falta de prova, não fala em ‘estupro culposo’. Este foi um termo usado por um site, mas não foi este o fundamento da absolvição. O fundamento da absolvição foi a questão probatória”, explica.
Após análises da sentença por parte de advogados, o The Intercept Brasil atualizou a matéria. Em nota, ressaltou: “A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo”. Entretanto, o fato de muitas pessoas terem conectado o termo a uma decisão da Justiça fez com que houvesse várias críticas aos responsáveis pela decisão.
Segundo a presidente do Comissão de Mulher Advogada, Manuela Braga, a primeira reação ao ver a matéria foi ficar estarrecida e perplexa. “Assisti o vídeo divulgado, li as alegações finais do promotor e a sentença judicial. Verifiquei, como advogada, que não houve tipificação de estupro culposo. Não sou advogada criminalista, mas da análise destas peças processuais constatei que o que houve foi uma sentença absolutória por falta de provas. Entendo que nossas forças devam ser canalizadas para o fato cruel, abusivo e em total e flagrante violência de gênero que ocorreu na audiência”, ressalta.
O advogado Ezequiel Vetoretti concorda. “A desinformação em torno do caso é muito grande. Em momento algum ficou destacado, informado ou ainda insinuado na sentença que houve um estupro sem a intenção de estuprar. Os fundamentos da sentença foram completamente desvirtuados pelo meio de comunicação que divulgou a matéria, que acabou ganhando milhares de adeptos que não se preocuparam em ler o teor da sentença, acreditando em uma inverdade. Um verdadeiro desserviço que acaba desencorajando vítimas a denunciarem esse tipo de violência”, comenta.
A influenciadora digital Mariana Ferrer trabalhava como promoter em uma casa noturna de Florianópolis em dezembro de 2018, quando teria ocorrido a situação de estupro. Em relato à polícia, ela disse que teve um lapso de memória e que acredita ter sido dopada.
Em julho de 2019, o acusado André Aranha foi denunciado pelo Ministério Público de Santa Catarina por estupro de vulnerável, uma vez que a vítima não estava em condições de manifestar resistência. A prisão preventiva do empresário foi pedida e aceita pela Justiça, mas acabou derrubada por uma liminar.
Mariana tornou o caso público em maio de 2019 e seu perfil no Instagram chegou a ser removido pela rede social devido ao processo judicial. Em 8 de setembro deste ano, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina absolveu André Aranha da acusação de estupro de vulnerável por falta de provas. A decisão foi divulgada nesta semana pelo The Intercept, que também publicou trechos da audiência, em que é possível ver o advogado de defesa do acusado exibindo fotos de Mariana, alegando que ela teria posado em "posições ginecológicas" e que estaria se utilizando da situação para se promover.
O caso Mari Ferrer repercutiu nas redes sociais e levantou movimentos com as hashtags #JUSTIÇAPORMARIFERRER e #estuproculposo. Atos em defesa da vítima foram marcados em todo o Brasil. Em Santa Cruz do Sul, o protesto ocorrerá neste sábado (7), às 15h, na Praça Getúlio Vargas – em frente à Catedral São João Batista. Na divulgação, os organizadores do evento pedem que os participantes levem cartazes, usem roupas brancas e tomem todas as medidas de segurança por conta da pandemia do novo coronavírus.